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A Própria Carne é terror psicológico e racial (Crítica)

O longa de terror A Própria Carne marca a estreia do universo cinematográfico do Jovem Nerd (JNCU), dirigido por Ian SBF e produzido por Alexandre Ottoni e Deive Pazos. Ambientado durante a Guerra do Paraguai, em 1870, o filme acompanha três soldados desertores que encontram refúgio em uma casa isolada, apenas para descobrir segredos ainda mais macabros do que a guerra que deixaram para trás. O elenco conta com Jorge Guerreiro, Luiz Carlos Persy, Jade Mascarenhas, Pierre Baitelli e George Sauma. A produção é uma coprodução das empresas Nonsense Creations e Neebla Filmes, com lançamento exclusivo nas redes Cinemark que aconteceu no último dia 30 de outubro de 2025. Além disso, o filme estreou na seleção “Première Brasil: Midnight Movies” do Festival do Rio, reforçando seu caráter ousado e provocativo.

Crítica – A Própria Carne

Com uma ambição que supera as limitações de sua produção independente, A Própria Carne se firma como uma obra potente e corajosa, sustentada por três pilares: uma execução técnica primorosa, atuações magnéticas e, acima de tudo, uma discussão racial afiada. O filme — a primeira produção cinematográfica do Jovem Nerd — oferece uma experiência visceral de terror, permeada por discussões sociais muito interessantes nas entrelinhas.

O primeiro grande mérito é o esmero técnico. Ciente de seu orçamento modesto, a produção investe em uma direção de arte inteligente e eficaz. A fotografia usa cores para construir uma atmosfera densa e opressiva, enquanto o design de produção — dos cenários na floresta à pesquisa histórica de figurinos e armas — demonstra um cuidado que enriquece a narrativa. Esses detalhes podem passar despercebidos por alguns, mas, para quem está ligado nos bastidores, revelam um trabalho louvável que eleva o filme muito além de uma simples produção independente.

Luiz Carlos Persy segurando uma espingarda em cabana pouco iluminada por vela, cena do filme 'A Própria Carne' do Jovem Nerd.

O segundo pilar reside no elenco, que é muito bem escolhido. Mas é impossível não destacar a performance monumental de Luiz Carlos Persy como “O Velho”. Construindo um antagonista que transita entre o enigmático e o aterrorizante — sobre o qual sabemos muito pouco — Persy domina cada cena em que aparece. Seus trejeitos, o trabalho de voz (algo em que o ator já costuma brilhar) e a presença imponente criam um nível de tensão altíssimo, fazendo com que ele figure, sem exagero, entre os vilões mais memoráveis do cinema de 2025. É uma atuação que rouba a cena e personifica o mal de maneira complexa e arrepiante.

É no terceiro pilar, no entanto, que A Própria Carne revela sua maior força. O roteiro coloca o protagonista Gustavo (Jorge Guerreiro) no centro de uma poderosa alegoria sobre o racismo estrutural. De forma sutil, mas incisiva, o filme ecoa o terror social de Corra!, de Jordan Peele. A trama, que envolve um ritual macabro, expõe como o corpo negro é visto como objeto — “carne” mais forte e desejável para o sacrifício. A metáfora da “uva” explicitada pelo vilão é brutal: o valor de Gustavo não reside em sua humanidade ou intelecto, mas na cor de sua pele e na força de sua carne.

Nas entrelinhas, a obra vai além e — de forma sutil, porém sofisticada — retrata Gustavo como um eterno fugitivo: da escravidão, da guerra e, agora, de seus captores. Não se trata de covardia, e sim de sobrevivência, forçada pela pressão de uma sociedade branca que o encurrala. A narrativa aborda o “pacto da branquitude”, no qual até mesmo supostos aliados estão dispostos a entregá-lo como bode expiatório para salvar a própria pele. A máxima de que “a carne mais barata do mercado é a carne negra” ressoa com força, mostrando que, embora ambientada no passado, a discussão dialoga diretamente com o presente.

Personagem vivido por Jorge Guerreiro atravessando floresta densa com saco nas costas em cena do filme 'A Própria Carne' do Jovem Nerd.

Apesar de algumas decisões de roteiro — falas ou ações de determinados personagens — soarem questionáveis numa análise fria, esses detalhes não diminuem o impacto da obra. Quem busca um terror psicológico sangrento sairá satisfeito; quem quiser captar camadas mais profundas encontrará um debate social interessante. No fim, o que permanece não é apenas o sangue, o gore ou o mistério, mas o soco no estômago provocado pela densidade de sua temática. A Própria Carne representa um primeiro passo incrível para o universo cinematográfico do Jovem Nerd, provando que o cinema independente pode, sim, ser grandioso em mensagem e execução.

Nota: 4/5

✍🏽 Marcelo Silva, CEO do Multi Nerdz
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Marcelo Silva

CEO, 25, SP

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